um weblog sobre literatura, viagens, momentos, poesia, sobretudo, sobre a vida. enfim, um weblog com histórias dentro.

terça-feira, outubro 28, 2014

no limite

não há paletes de cores sufcientes para descrever os sentimentos que moram cá dentro e lá ao longe.
há sempre um entre-cores, entre-linhas, entre-qualquer-coisa. é bom. é bom estar no meio, no meio da balança, no equilíbrio. de um lado uma extremidade, do outro lado, outra extremidade. gosto de abrir os braços e aconchegar os pontos limite de cada lado. abraço apertado ao limite de cada realidade. um pé para cada lado, sempre com a cabeça no meio.

sexta-feira, outubro 24, 2014

'ama como a estrada começa'

há um verso do poeta Mário Cesariny que é um dos meus lemas de vida.
'ama como a estrada começa'
de alguma forma este conjunto de palavras dá-me sorte em todas as estradas que se mostram diante de mim - como linha na agulha para continuar a cozer a minha vida.
de novo o verso pousa à minha frente.
eu recordo o verso. amo-o como um filho. e ele ama-me. porque vem sempre até mim.
'ama como a estrada começa'. é o que vou fazer. permitir-me ser feliz com mais esta estrada para percorrer.
sobretudo, sentir que foi a estrada que me escolheu a mim, e não eu a ela.
sinto-me valorizada, reconhecida, positiva e alegre com esta nova oportunidade. sentir que eu própria sou oportunidade.
estou a amar como uma estrada nova começa. cinto posto, a viagem está prestes a começar.

quinta-feira, setembro 18, 2014

a liliana que há em nós

há dois ou três dias foi publicada uma estória no jornal Público sobre a grávida que perdeu o trabalho por estar...grávida. por querer fazer crescer a natalidade do país. por querer fazer do país um sítio menos velho. por querer contribuir para futuras pensões. por querer contribuir para a economia e desenvolvimento de um país. por responder que sim, ao fim e ao cabo, aos apelos do governo. a liliana é um exemplo de muitas lilianas por ai. engravidou, foi ameaçada e perdeu o emprego.
na obra de Eça de Queirós, muito na moda, agora, lê-se que Portugal é um 'chiqueiro'. e é. gente que diz uma e faz outra. eu vivi este pesadelo quando estive grávida. a dar tudo por tudo. para que fosse deixada ao acaso. para que fosse para o lixo. é assim mesmo que se sente - um lixo. deixa-se de ser 'ser humano para ser um zero à esquerda, à direita, de frente e de trás. a mim nem se deram ao trabalho de me ameaçar, de me substituir. fecharam a porta, nem um obrigada pelo trabalho, nem um 'está despedida', nem uma palavra. gente 'torpe' [lá diz Eça] que é tão chiqueira quanto o país.

terça-feira, setembro 09, 2014

Deus dá nozes a quem não tem dentes

Deus dá nozes a quem não tem dentes.
uma mulher de corpo bem feito, bonita de cara, pobre de espírito. um homem, jeitoso por sinal, sorridente, a arrotar amabilidades com a mulher - mulher dele, ele, homem dela. os dois com dois filhos - dos dois, ternuras. filhos bonitos. cena de cinema. todos lindos, de férias, ao sol, longe de todos os defeitos, de todos os males - embrulhados numa película de plástico com uma mensagem: frágil, por favor, não toque.
mulher, espírito pobre, do contra, a ser altamente bajulada, idolatrada, pelo resto da família - marido, filha e filho. a mulher adornada de uma ponta à outra, sorriso maquilhado - falso de uma ponta a outra. mais: relógio de marca, biquini de marca, chinelo sujo de marca. daqueles seres que, assim, ao longe, devem ter tudo - um trabalho onde se ganha dinheiro a sério, uma família rica no banco, imune a qualquer anormalidade da vida. por conseguinte, mulher azeda, tiques de uma educação rude, grosseira - do 'sou centro do mundo'.
quando me deparo com pessoas assim, vejo a outra margem - humanos humildes, que lutam pela dignidade da vida, pela saúde, por todas as anormalidades da vida, que maquilham tudo menos o sorriso - e, ainda assim, apanham porrada por todos os lados.
não entendo. custa entender. por que uns amargos, comem nozes sem dentes, e outros doces, passam as passas do Algarve.

sábado, setembro 06, 2014

da anunciação

anunciação. de coisas boas e más. desde sempre, há uma anunciação para cada momento das nossas vidas.
eu tenho uma amiga que se chama Anunciação. todas as vezes que digo 'Anunciação' há necessidade de repetir/anunciar o nome. eu nunca tive esta incerteza na fonética. gostei mais do nome quando conheci a pessoa. foi há três anos na Acapo - associação dos cegos de portugal. reunião marcada numa manhã amena no porto. juntas começamos um projecto nosso que hoje existe em trejeito infantil e que neste trejeito pequeno já deu um livro, e uma amizade. a poesia cresceu na Anunciação, e a minha admiração pela Anunciação anunciava-se a cada dia que íamos ganhando passado. A Anunciação é amblíope tal como eu vejo mal ao perto e preciso de óculos. a amblíopia é um pormenor, apenas para explicar a ligação da minha amiga à Acapo. lembro de entrar na Acapo, e esperava-me uma Anunciação ansiosa por coisas novas, abria muito os olhos na expectativa de me conhecer melhor. Disse sim à poesia, à minha ideia, sem saber se eu era boa ou má - coisas de corajosos e audazes perante a vida. Com o tempo as nossas conversas e os nossos cafés foram mais do que poesia (será possível algo ser mais que poesia?)mais do que as nossas sessões Um Sentido na Poesia. Sempre que tricotamos conversas, regresso a casa com uma admiração profunda por aquela mulher e amiga. espada na mão, garra na alma, alegria difícil no corpo, sorriso para o que der e vier. assim é-me anunciada a Anunciação. a minha amiga.

segunda-feira, agosto 25, 2014

estórias de metro a metro - all night long

os dias da semana adormeceram. todos. as noites dormem como sempre, à excepção das noites de sexta-feira e de sábado.
não existe noite. os dias continuam das zero horas às zero horas. de sexta-feira ao acordar de domingo.
dá imenso jeito o move do metro na cidade do porto. a malta pode dar corda aos ponteiros que ainda assim não perde a hora da carruagem na estação. mas atenção: andante na mão, porque os revisores também move.

quarta-feira, agosto 20, 2014

segredos abertos

há segredos que nos sussuram uma vida inteira. só os ouvimos quando a vida quer.
passei a minha vida com a certeza que todas as minhas características vinham do meu lado materno. até que.
até que a aproximação a uma tia do lado paterno mostrou-me que afinal.
afinal o meu lado paterno corre-me nas veias e no sorriso.
há um retrato da minha avó - que nunca conheci - na parede branca na casa dos meus pais. a mesma que está na morada onde a avó repousa para sempre. a única que conheci. no retrato, a avó já adiantada na idade. com barriga no queixo. um sorriso alegre. a pele morena. os olhos azeitona-preta. o cabelo puxado atrás.
a tia, irmã do meu pai, emigrada em frança durante uma vida que deu vida a filhos - 4 - finalmente regressada da vida para outra vida, me contou muito. tudo. tudo o que o meu pai me ia sussurando a miúde - como peças de puzzle.
depois da tia conheci a prima que até então só conhecia de nome, porque eu sou portugal e ela frança. a prima disse-me palavras banais, e neste vento comum eu revi-me. como de manhã quando me penteio ao espelho.
foi daqui, deste ãngulo adn, genes, o que for, que percebi a minha timidez de alma, e a euforia do meu riso.
percebi todas as vezes que ia ao cemitério visitar os avós sem nunca ter conversado com eles. ficava a olhar as fotografias a preto e branco a saborear um diálogo vazio, a imaginar o 'e se'. e, depois, quando acedi a um retrato da avó - rosa - mais nova, vi o meu queixo, o desenho da minha boca, a segurança do meu olhar.
espreitei na fechadura do meu passado que nunca foi meu.

terça-feira, agosto 12, 2014

oh captain, my captain

a vida é como seguir o rasto de um exemplo. seja dos nossos pais, da família mais próxima, depois de professores e de amigos. a seguir a esta lista vêm os ídolos, por norma artista ligados à música ou ao cinema. é natural que o actor Robin Williams me tenha marcado. muito. o clube dos poemas mortos bem pode estar no meu top 10 dos melhores filmes. e para mim um bom filme é o conjunto de uma sopa de letras: bons actores, bom argumento, bons tempo e espaço, boa banda sonora. sobretudo, os diálogos. sobretudo, a alma com que se veste um diálogo. o Robim Williams fazia isso. era mesmo um captain.

quarta-feira, julho 30, 2014

bochechas vermelhas ao sinal vermelho

carro 1: mãe e filha.
carro 2: senhor idoso.
trânsito pára ao sinal vermelho.
carro 1 pára ao lado do carro 2. paralelos.
calor do dia faz com que os vidros dos dois carros estejam recolhidos.
idoso do carro 2 mostra a língua à filha do carro 1. filha entusiasma-se e riposta a mesma careta.
os dois fincam o olhar e desenham caretas maiores.
mãe do carro 1 fica tão vermelha como o sinal de trânsito. experimenta um 'comporta-te'.
filha e idoso desgraçam-se em gargalhada. sinal muda para verde. mãe arranca em vermelho.

quarta-feira, julho 23, 2014

estórias de metro a metro - até beiriz pelo estádio do dragão

quarta-feira. olhos piscos da digestão do almoço. corrida de metro até ao estádio do dragão. luta contra os ponteiros do dia. estou a apreciar as linhas de comboio em campanhã, quase-quase a cortar a meta. três miúdas passeiam como se não houvesse amanhã pelos corredores da minha carruagem no metro. conversam com dúvidas em todo o vocabulário. decidem quebrar as suspeitas comigo.
'estamos bem para beiriz?'
(se esta fosse a minha dúvida, não só corria pelos corredores de todas as carruagens do metro, como enfiava as mãos nos cabelos e apertava-apertava-apertava)
'estão precisamente no sentido contrário'.
caras esbugalhadas de pânico.
'calma, não é o fim do mundo'.
(isto de ter ultrapassado a barreira dos 30 dá-me charme às emoções)
'saem no estádio do dragão e vão para a linha oposta'.
desfazem-se em obrigadas. suspiros de quem se livrou da maior desgraça do mundo.
eu rio, elas sorriem. eu corto a meta. elas ainda hão-de cortar.

segunda-feira, julho 21, 2014

Homem-relâmpago

Homem relâmpago que

lampejas,

Que me mergulhas no

olhar,

Com olhos de folha de

outono

Com a força do inverno,

Que ofereces ouro com

os teus poderes de

alquimia,

Que trazes escondidos

no peito,

Onde está a porta para o

teu incêndio?

Amas-me como as

folhas se amam em

vendaval.

Tocas-me como o mar

na areia.

Andas ébrio de amor

que te escorrega pela

boca,

Vazio como uma

azeitona sem caroço,

Cheio de sono como

um bebé acabado de

amamentar,

Diz-me,

Onde fica o teu norte, e

já agora, o teu sul?

Iluminas-me sem luz.

Diz-me,

Homem relâmpago que

lampejas,

Até onde vai o teu

coração,

Que eu mal vejo o seu

horizonte.

Lampejos de loucura no

teu cabelo que voa,

Que rema além do céu

navegável.

Sorri-me na pele,

E eu conto-te o meu

segredo,

Molha-me com

lampejos, Homem

relâmpago

Que eu desmaio de

temores de ternura.

Deixo a janela aberta

para as tuas fotografias

nocturnas.

Apenas, diz-me,

Homem, sou pérola na

tua concha?

Porque, se for,

Eu sou o raio do teu

lampejo,

O maior verso da

explosão do universo.

sábado, julho 19, 2014

estórias de metro a metro - 'gude laka'

por esta altura invejo os turistas do porto. andam por todo o lado. utilizam o metro para todas as deslocações. e, por norma, sabemos exatamente quando retornam ao país de origem - ar cansado, adormecidos no ombro do companheiro de estadia, malas sujas pelos dias, abundantes em sacos-souvenirs. câmaras como colares, memórias dos clérigos, da ribeira, das galerias, das sardinhas de matosinhos, dos museus, do eléctrico até à foz. e das pessoas genuínas como o mar. os turistas não sabem, mas contactam com o bairrismo sem perceberem.
viagem entre a trindade e francos: uma mulher, deve ter 35 anos mas aparenta mais dez, marcada pelos vícios; lê a Maria como quem decora um texto para um exame - olhos colados às páginas. ao lado, um casal-turista: aspecto de quem engoliu a cidade de uma só vez; falam inglês entre si.
chegada a francos, a mulher com toda a sua alma, simpatia humilde, diz: 'u turists, u sepike ingeles, ai sepike, gude laka, bye bye'.
o casal-turista, sem responder, ficou palerma a olhar mais um aspecto cultural que não vem nos guias: a transparência de uma cultura local sem limites, um bairrismo nobre, que abraça-abraça-abraça.

sexta-feira, julho 18, 2014

nem tudo é bom, mas nem tudo é mau

houve um dia da minha vida em que conheci um astrólogo,e no âmbito de uma reportagem me disse que eu atraia pessoas más, cheias de turbulência, problemas e ímpares em vingança. ele dizia que quem dizia era o meu mapa astral. foi aqui que comecei a duvidar daquela ciência das estrelas. fiquei a pensar no assunto: 'cativo pessoas más'. desacreditei. simplesmente, porque não é verdade. fiz uma lista das pessoas que me rodeavam na ocasião,e ainda hoje me estendem a mão,
pais,
mano,
avós,
tios,
tias,
primos,
primas,
amigos - a família que escolhemos.
pessoas com problemas, sim, aliás, como cada um de nós, porém límpidas de carácter. cristalinas de sentimentos. que gostam de mim.
hoje, tive mais uma prova de que não sou íman de pessoas más. cada vez mais me acho sortuda com as pessoas que conheço e se cruzam no meu caminho.
hoje, precisei de levar o carro ao médico. fui com uma ponta de luz a um novo mecânico para mim. antes do mais apressei-me a dizer que estava desempregada, como quem escreve em entrelinhas. 'o carro tem que ir à inspecção, sei que precisa de lâmpadas e escovas novas, mas não sei se está apto a passar o exame'. 'não se preocupe, eu trato de tudo'.
este tudo preocupou-me. o tudo para mim podia não ser o tudo do senhor de macacão.
não é que o meu novo amigo tratou mesmo de tudo: fez o que tinha a fazer, e ainda me levou o carro à inspecção.
'tem aqui os recibos, está tudo tratado'. quanto custou a eficiência? o senhor de macacão só queria o dinheiro da inspecção.
'nem a mais, nem a menos, eu estou desempregada, o senhor não'.
admira-me cativar tanta gente com o coração no sítio. nem tudo é bom, mas também nem tudo é mau. e as surpresas são soalheiras em dias de chuva.

terça-feira, julho 15, 2014

Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço

8h. sim, oito da manhã. consulta externa no hospital de santo antónio. corredores apinhados de conversas bocejadas a café, espirros e gente feia de doença. uma sala de espera e uma secretária para todas as perguntas: onde é este serviço, e aquele, e o outro, e falta muito, e depois, as taxas moderadoras? a sala de espera torna-se, de repente, num aeroporto, uma senhora sorridente, de farda aos quadradinhos branca e vermelha, serve café, bolachas, chá, sobretudo serve consideração por todos os pacientes, uns mais graves do que outros.
na parede uma televisão fala muda para as dezenas de olhares de baixo para cima. diz que se deve lavar as mãos várias vezes ao dia. ensina como lavar. com o quê: água e sabão. em abundância.
Mas,
necessito do w.c.
sigo o conselho
como sempre, aliás
vou lavar as mãos,
aquele w.c.
dentro do hospital
com letreiros que ensinam a lavar as mãos - local de residência de bichinhos que levam a doenças -
não tinha sabão
apenas munido de um fio de água escorregava
a cada dois segundos.
crise?
de...

segunda-feira, julho 14, 2014

Não fiques triste e espera na fila

Muitas vezes olhamos as oportunidades como absolutamente únicas e irrepetivéis. Ensinaram-nos assim. Mas, como em tudo na vida, tão imprevisível que é, as oportunidades podem apenas não estar na linha cronológica certa. Talvez...talvez, hoje não seja o momento, e talvez...talvez, amanhã chegará a nossa vez para a oportunidade desejada. Nesse entretanto, vamos educando características, dando personalidade às ferramentas para a oportunidade que procuramos.
Hoje declinaram-me a oportunidade de fazer voluntariado numa associação que eu tanto ambicionava. Eu cá continuo na fila. A fazer outro voluntariado que me anima o tempo e o tempo do meu outro. Espero com paciência, a ganhar maturidade para quando chegar a minha vez na linha cronológica, estar preparada para o sim, e que o sim esteja preparado para mim.
Por isso, nada de desesperar pelas oportunidades que almejamos, a estratégia passa por persistir na fila, a engordar qualidades. Só assim cativamos o sonho.

sábado, julho 12, 2014

estórias de metro a metro - 'oh maria, estás aqui?'

De manhã o metro segue sossegado. Qualquer som desperta qualquer olhar. O som daquela manhã fez tremer as carruagens inteiras. Vai cada passageiro na sua vida - as mulheres com as carteiras ao colo como um filho; os homens com o olhar alheio em algum ponto do ar. E, nesta respiração leve de cada um, o metro pica mais uma estação, e nesse momento, ao invés de chegar um passageiro, chegou uma voz. Som feminino esbaforido e sumido. 'Oh Maria, estás aqui?'. Foi mais: 'OH MARIIIA, ESTÁS AQUI?' Penso que todos os passageiros, na sua vida, se perguntaram, se não seriam a Maria; quanto mais não seja para agradar ao empenho, à desvergonha daquela voz assumida e destemida. Ficámos sem saber se a voz era loira ou morena, ou gorda ou magra. Apenas foi validada a voz naquela viagem, sem andante. Uma coisa foi certa: em alguma carruagem naquela manhã do metro do Porto estaria uma Maria, na sua vida, com a carteira ao colo como um filho e uma voz carente no seu rasto.

sexta-feira, julho 11, 2014

Obrigada Maria

A Maria deu-me uma bofetada. Em resposta sorri e agradeci.
A Maria tem idade para ser minha mãe. Não é mãe. A vida não lhe deu essa bênção, mas deu-lhe tantos obstáculos e tantas bofetadas que aprendeu o que poucos aprendem: a ser feliz com o que tem. A dar um abraço a cada alegria que a vida não lhe tirou. Esta alegria branda pode ser uma conversa com uma amiga.
A Maria trabalhou desde que aprendeu a andar, a falar, a cheirar, a ver. A infância da Maria foi de suor e de poucas bonecas. A infância da Maria foi de ausência de pai e de chicotada quando resolvia aparecer. A infância da Maria teve amor-ríspido de mãe. Sopa quente de noite e um cobertor para todas as noites de todos os anos.
A Maria cresceu. Já mulher conheceu um homem. Foi traída pela liberdade do casamento que julgava ser, e conviveu com a maldade humana durante anos. A infância mentida foi prenúncio para uma idade adulta sem flores.
Porém,
Maria cheirava, via, andava, falava. Encontrou a felicidade no trabalho. Todas as noites fazia tomadas para acendermos as lâmpadas das nossas noites nas nossas casas. E nessa fábrica a vida embrulhou só para ela, amigas, momentos que ficam no íntimo de cada um.
Quando regressava a casa com o peso do passado nas costas, encontrava um presente envenenado – o homem que não era digno do nome marido.
Arranjou forças, coragem que só tem quem sofre. Pediu o divórcio. No meio da luta pela própria vida atacou-lhe um esgotamento que a arrastou para pilhas de medicação, para a cama, para a solidão sem tréguas.
Até que,
Alguém que reparou. Alguém soube que a sua mão levantaria o peso da alma desmaiada da Maria. E Maria deixou que o sol entrasse.
E o sol sai do corpo da Maria e o peso do mundo não chega a um grama.
A Maria podia ser escuridão, podia ser rude, podia ser amarga, involuntária.
Mas,
Apesar das rugas cravadas no rosto, escolheu ser uma centelha rara no mundo que ri e olha para o lado. A ver se há alguma vida que necessite ser levantada. Escolheu acolher a velhice da mãe sem mágoa e com amor. Escolheu ir dançar porque gosta. E, apesar de aos 55 anos ter sido dispensada pela empresa, escolheu fazer formações e procurar trabalho. A Maria escolheu levantar o próprio peso.
Obrigada Maria.

quarta-feira, junho 25, 2014

o sentido de mim

cada vez mais tenho tino em mim mesma. sei qual é o sentido de mim mesma. o caminho que quero e o que não quero. cada vez mais gosto mais de mim. a sério, amor de paixão. cada vez mais sei fazer a triagem do que é importante, do que não é. faço caretas ao lixo do dia-a-dia, e sorrio ao que me alegra, e me veste a alma e saúda o coração. os outros não passam disso mesmo - outros. escrevo o sentido de mim mesma. hoje e todos os dias.

sexta-feira, junho 13, 2014

brinde final

presa por um fio de alma,
deixo cair a vida em trapézio.
em sabrinas de bailarina, os pés crescem em escada,
tocam o céu, almejam o céu.
sou iôiô.
acima e abaixo, sempre à espera de ser empurrada para o centro,
para o brinde final.

quarta-feira, junho 11, 2014

estórias de metro a metro - do hamburger

entre um hamburger no meio de duas fatias de pão, borratado de mostarda ou ketchup, ou uma bola de berlim, eu prefiro - sem sombra de dúvida - uma bola de berlim. primeiro porque tem um cheiro, vá lá, fofinho, e depois, o risco é menor de proporcionar nódoas para a prosperidade. se viajamos numa carruagem do metro tripeiro apinhada de gente, e vamos com o nariz quase colado à marmita do vizinho, a tragédia é inevitável. Foi a isto que assisti - um hamburger a saltar para o abismo do decote da senhora nos 50 anos. A senhora agitada pela viagem, segura pelo rabo, com as mãos atrapalhadas em sacas, ficou abananada com o pedaço de carne na sua carne. O jovem, relutante, desculpava-se, entre o remorso de ter perdido um hamburger e a hesitação de lhe chegar um guardanapo. Limpar as nódoas no epicentro de um decote? Apetecível, mas incorrecto. Sacas para um lado, a mulher safa-se como pode, e o jovem amassa tudo para o lixo. Hamburger no metro? Não, obrigada. Fica para a próxima paragem.

quarta-feira, maio 21, 2014

gente do verbo ir

Há gente para todos os feitios e cores. Gente parada e gente em movimento. Aqui do meu planeta, assisto àqueles que por ordem de um sonho ou de uma mania, apostam a vida numa aventura desassossegada. Gosto de gente assim. Que em nome de uma fisgada no coração, arriscam e descruzam os braços. Que se levantam do conforto do sofá e fazem da vida um extremo. São um alpinista em combate contra uma avalancha. Ou um Salgueiro Maia frente a um regime. Fazem um regime seu, sem medo e com muita crença e persistência. Admiro-os daqui - do conforto do meu sofá.

quinta-feira, abril 24, 2014

o céu é o meu chão

há pingos de chuva que me atingem como balas, a um dia da liberdade. acordam-me passos pesados, perseguem-me sonhos leves, literatura infantil da dor que amanhece. amanhã é já hoje. não há tempo para prosa, somente para poesia. há pingos de chuva que me atingem como balas. o céu mudou de sítio. está debaixo dos pés. o chão lá em cima e o céu é o meu tapete. juro que amanheceu assim. hoje. a um dia da liberdade. a um passo do sonho leve, da literatura infantil do sorriso que adormece.

segunda-feira, abril 07, 2014

Manuel Forjaz ou aquele que nos ensinou a viver

Todos conhecemos o Manuel Forjaz. E não é pelo brio profissional para o qual trabalhou. Nem pelas conquistas pessoais que alcançou. Nos últimos tempos quando se falava em Manuel Forjaz, falava-se de vida e felicidade. Há pouco mais de um mês punha a roupa a secar quando da sala ele falava comigo ou para mim. Foi das poucas vezes que me senti tão feliz por estar a esticar meias e camisolas e calças. Ouvia-o dizer que a vida é para ser vivida. Que não nos devemos preocupar com as mesquinhices da rotina. Que o que realmente importa são os pequenos e as mais simples traços de vida. Que vida não é respirar, a vida é respirar com amor, com gratidão e um sorriso na cara. Porque há sempre motivos para sorrir - quanto mais não seja porque alguém hoje sorriu para nós. O Manuel Forjaz é uma das aquelas pessoas que veio ao mundo para lembrar a todos no mundo que a vida não é um mar de rosas, mas certamente, pode ser rosas com muito mar dentro - para navegar, lutar, respirar, brincar, olhar o horizonte, naufragar, e ainda assim, amar e boiar com o céu ao alcance do coração.

segunda-feira, março 03, 2014

fragmento de um romance: há dias em que custa levantar. depois há dias em que custa sair da cama. quando se apercebe já custa tomar banho, cuidar da aparência. e da aparência da alma. escreve-se uma lista com afazeres. e surge a pergunta: para quê? e depois ouve-se: o sol está atrás das nuvens. tão envergonhado como todos nós. e dentro do coração tricotado a teias de aranhas ouve-se baixo: para o...nde hei-de bombear o sangue? onde está o sangue? mais: onde está a estrada? tenho tanta luz à frente e os meus olhos continuam escuros. fragmento de um romance: por minha culpa, minha tão grande culpa. ensinou-me a avó sãozinha. há gente que simplesmente não consegue pedir ajuda, ensinou-me o PC. somos um bando de egoístas. oferecemos as mãos, porque a sociedade aplaude. os médicos receitam caixas de merdas porque ganham viagens. todos julgam ter razão, ter o mundo nas mãos, só para eles. pimenta no rabo dos outros é refresco para mim, ensinou-me o meu avô. fragmento de um romance: primeiro eu. depois quem me interessa. e depois talvez tu. ensinam-me as pessoas que me empurram no passeio como se pagassem aluguer. essas que nada sabem de mim, eu que nada sei delas. na verdade, nem quero saber. amor com amor de paga. fragmento de um romance: não tenho que ouvir gente intrometida a responder-me mal. da próxima levam uma chapada na cara. nasci aquário e às vezes esqueço-me disso. tenho a cabeça na lua mas a solidariedade de Deus, e a coragem do vento. fragmento de um romace: eu sou Deus. posso esquecer-me disso. podem-me cair sonhos entre os dedos, pesar-me nas costas a frustração de um trabalho que ninguém soube valorizar, a falta da festinha na cara que às vezes sabe bem. mas EU sou Deus. fragmento de um romace: posso um dia morrer velha, contar dois ou três desejos que realmente concretizei, mas no momento em que fechar os olhos, apenas espero sentir que fui honesta comigo ao tentar conquistar a minha Lenda Pessoal (poucos sabem o que isto é), e honesta com os outros ao dizer sim com verdade e não com coragem. fragmento de um romace: acredito na vida, acredito que sou feliz. sobretudo acredito no que aprendi no Caminho de Santiago: escolhe um caminho, mas escolhe, e que a partir daí que a decisão seja genuína, parta do centro de ti e jamais olhes para trás. fragmento de um romance: nasci para me agradar e agardar a quem amo e merece o meu amor. [fim à simpatia forçada, fim a desculpas porque me esqueci disto ou daquilo, fim à fraqueza]. [que me lembre sempre das palavras de um peregrino de 2004, e só hoje me recordei, tens o céu nos olhos,parace que trazes ai dentro todo o mundo, faz com ele o que quiseres]. fragmento de um romance: tudo o que resto que se foda.

poema ao desaparecido

esvaziar para voltar a encher. sopraram-me hoje ao coração. como se faz isso? Pergunta a criança grande desamparada. Cheia. Cheia de coisas das ruas, das casas, das pessoas, das caixas, do passado. Sopra. Sopra. Sopra. Sopra. Cá para fora. Deita cá para fora. Vomita. Custa vomitar. Começar por onde a soprar. Esvaziar onde, por onde? Gritos. Gritos. Gritos. Tenho de ser filtro. Separar o mar como fez moises. Mas eu não sou móises, ou posso ser quem quiser? Um acorde. Basta um primeiro acorde. Que vem do centro de nós. Para acordar. Para limpar a nódoa. O que quer que seja que está a mais. A corroer. A bloquear. ‘se vens a mim, vem a rir’. Disse jesus. Terei de rir com verdade. Terei de rir do centro de mim. Começarei por arrumar a casa. A minha casa. Aquela onde os convidados já sabem quem são os convidados e são escolhidos a dedo. Terei de fazer a minha viagem. Contar o meu conto. Encontrar as minhas palavras. Saber ouvir. Sobretudo saber aceitar. Sobretudo saber agradecer. Sobretudo saber qual a minha missão. Lutar. Palavra pequena e mágica. Pequena e poderosa. Pequena e desafiadora. Pequena e inspiradora. Pequena e árdua. Pequena e necessária. Perguntam-me: [todos] O que queres? O que queres? O que queres? Acho que é a isto que tenho de responder com genuidade. Para mim e para os outros. Traduzir sentimentos em acções. Esperança em ‘seja feita a sua vontade’. Alinhar-me. Deus dá os desafios próprios a cada um dos seus filhos. Não se pode ganhar sempre, mas também não se pode perder sempre. E é nesta dança em que estou.

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

ao r.p.r. Como posso dizer que gosto de ti? De que forma? Que gestos manobrar? Que palavras escolher? Dizer que te gosto é pouco. Diminuto face à dimensão do amor. Do meu amor. Não gosto de ti. Não posso reduzir o farol da minha noite a esse verbo pequeno e banal. Como poderei usar a palavra gostar Para o tamanho das nossas almas? Para nós? Eu gosto de esparguete. Mas tu não és esparguete. És a água em ebulição, o vulcão em erupção, o mar agitado a espalhar correrias. Gosto de andar no passeio com os olhos postos no céu. Disto gosto. Também gosto dos cabelos a voar atrás dos ombros. Estas coisas eu gosto. São coisas. Materiais de vida. Mas tu és grande de mais para gostar. E gostar pequeno de mais para ti. Não encontro na minha pátria linguagem que te associe. Procuro no vento pedaços de voz, Pergunto ao mar o que te dizer, Espreito entre os dedos sinais para te dedicar a melhor expressão do meu coração. Mas o meu coração está desprovido de palco, Porque não encontra a melhor peça de teatro. Onde tudo vale, nem o gostar vale. Não gosto de ti. Amo-te.

terça-feira, fevereiro 04, 2014

o mar dentro de mim

há um mar que se agita e grita no fundo de mim, explode ondas de sangue, atira areia da cabeça aos pés, é voraz, como todos os mares, em cada fundo de mim. não durmo, é um mar-desassossego, deixa-me acordada a cada onda que. que bate no peito. que bate no rosto. que bate r.u.i.d.o.s.a.m.e.n.t.e no fundo de mim. sou poço sem fundo. perdi-me no fundo de mim. só o mar, grande, u.n.i.c.a.m.e.n.t.e enorme, encontra o fundo de mim, navega, como uma gaivota em terra, quando há tempestade no mar.

terça-feira, janeiro 28, 2014

estórias de metro a metro - do sabonete

mal entrei no metro pensei que tinham acabado os sabonetes todos do mundo. no pingo doce, continente e similares, nas casas dos chineses ou perfumarias. pensei mesmo que o mundo tinha ficado desprovido de tudo quanto era cheirinhos. que da noite para o dia alguém tivesse varrido sabonetes, gel de banho. coisas destas que nem um euro custam. é manhã e há pessoas que cheiram mal. da boca. dos braços. dos cabelos. cheiram a suor e outras coisas mais e más. foi preciso entrar na primeira carruagem e sair na última. fugir aos pingos de suor, ao rasto do bad smell.

terça-feira, janeiro 14, 2014

estórias de metro a metro - da chuva

faz chuva. os guarda-chuvas atrapalham-se em curvas e contracurvas. o metro a tempo, os passageiros não. correm contra a chuva, contra o vento, sacodem água das capas, cospem os cachecóis da cara. abrem a carteira, voam papéis, voa o andante. validam o cartão, validam a viagem até ao resto do dia. a chuva não pára, o vento também não. a esperança estanca de uma ponta à outra ponta do dia. os sonhos páram - um instante - entre a respiração da manhã e a respiração da noite. caem pingos de lágrimas ao ritmo da chuva. há um hiato. um espaço de 8 horas que são um segundo. todos jogamos ao macaco chinês. quando abrimos os olhos com mau hálito ao momento em que lavamos os dentes e fechamos os olhos. entre uma coisa e outra somos estátuas, à espera da noiva-esperança, do sonhos. à espera - que alguém diga macaco-chinês.