um weblog sobre literatura, viagens, momentos, poesia, sobretudo, sobre a vida. enfim, um weblog com histórias dentro.

quarta-feira, julho 30, 2014

bochechas vermelhas ao sinal vermelho

carro 1: mãe e filha.
carro 2: senhor idoso.
trânsito pára ao sinal vermelho.
carro 1 pára ao lado do carro 2. paralelos.
calor do dia faz com que os vidros dos dois carros estejam recolhidos.
idoso do carro 2 mostra a língua à filha do carro 1. filha entusiasma-se e riposta a mesma careta.
os dois fincam o olhar e desenham caretas maiores.
mãe do carro 1 fica tão vermelha como o sinal de trânsito. experimenta um 'comporta-te'.
filha e idoso desgraçam-se em gargalhada. sinal muda para verde. mãe arranca em vermelho.

quarta-feira, julho 23, 2014

estórias de metro a metro - até beiriz pelo estádio do dragão

quarta-feira. olhos piscos da digestão do almoço. corrida de metro até ao estádio do dragão. luta contra os ponteiros do dia. estou a apreciar as linhas de comboio em campanhã, quase-quase a cortar a meta. três miúdas passeiam como se não houvesse amanhã pelos corredores da minha carruagem no metro. conversam com dúvidas em todo o vocabulário. decidem quebrar as suspeitas comigo.
'estamos bem para beiriz?'
(se esta fosse a minha dúvida, não só corria pelos corredores de todas as carruagens do metro, como enfiava as mãos nos cabelos e apertava-apertava-apertava)
'estão precisamente no sentido contrário'.
caras esbugalhadas de pânico.
'calma, não é o fim do mundo'.
(isto de ter ultrapassado a barreira dos 30 dá-me charme às emoções)
'saem no estádio do dragão e vão para a linha oposta'.
desfazem-se em obrigadas. suspiros de quem se livrou da maior desgraça do mundo.
eu rio, elas sorriem. eu corto a meta. elas ainda hão-de cortar.

segunda-feira, julho 21, 2014

Homem-relâmpago

Homem relâmpago que

lampejas,

Que me mergulhas no

olhar,

Com olhos de folha de

outono

Com a força do inverno,

Que ofereces ouro com

os teus poderes de

alquimia,

Que trazes escondidos

no peito,

Onde está a porta para o

teu incêndio?

Amas-me como as

folhas se amam em

vendaval.

Tocas-me como o mar

na areia.

Andas ébrio de amor

que te escorrega pela

boca,

Vazio como uma

azeitona sem caroço,

Cheio de sono como

um bebé acabado de

amamentar,

Diz-me,

Onde fica o teu norte, e

já agora, o teu sul?

Iluminas-me sem luz.

Diz-me,

Homem relâmpago que

lampejas,

Até onde vai o teu

coração,

Que eu mal vejo o seu

horizonte.

Lampejos de loucura no

teu cabelo que voa,

Que rema além do céu

navegável.

Sorri-me na pele,

E eu conto-te o meu

segredo,

Molha-me com

lampejos, Homem

relâmpago

Que eu desmaio de

temores de ternura.

Deixo a janela aberta

para as tuas fotografias

nocturnas.

Apenas, diz-me,

Homem, sou pérola na

tua concha?

Porque, se for,

Eu sou o raio do teu

lampejo,

O maior verso da

explosão do universo.

sábado, julho 19, 2014

estórias de metro a metro - 'gude laka'

por esta altura invejo os turistas do porto. andam por todo o lado. utilizam o metro para todas as deslocações. e, por norma, sabemos exatamente quando retornam ao país de origem - ar cansado, adormecidos no ombro do companheiro de estadia, malas sujas pelos dias, abundantes em sacos-souvenirs. câmaras como colares, memórias dos clérigos, da ribeira, das galerias, das sardinhas de matosinhos, dos museus, do eléctrico até à foz. e das pessoas genuínas como o mar. os turistas não sabem, mas contactam com o bairrismo sem perceberem.
viagem entre a trindade e francos: uma mulher, deve ter 35 anos mas aparenta mais dez, marcada pelos vícios; lê a Maria como quem decora um texto para um exame - olhos colados às páginas. ao lado, um casal-turista: aspecto de quem engoliu a cidade de uma só vez; falam inglês entre si.
chegada a francos, a mulher com toda a sua alma, simpatia humilde, diz: 'u turists, u sepike ingeles, ai sepike, gude laka, bye bye'.
o casal-turista, sem responder, ficou palerma a olhar mais um aspecto cultural que não vem nos guias: a transparência de uma cultura local sem limites, um bairrismo nobre, que abraça-abraça-abraça.

sexta-feira, julho 18, 2014

nem tudo é bom, mas nem tudo é mau

houve um dia da minha vida em que conheci um astrólogo,e no âmbito de uma reportagem me disse que eu atraia pessoas más, cheias de turbulência, problemas e ímpares em vingança. ele dizia que quem dizia era o meu mapa astral. foi aqui que comecei a duvidar daquela ciência das estrelas. fiquei a pensar no assunto: 'cativo pessoas más'. desacreditei. simplesmente, porque não é verdade. fiz uma lista das pessoas que me rodeavam na ocasião,e ainda hoje me estendem a mão,
pais,
mano,
avós,
tios,
tias,
primos,
primas,
amigos - a família que escolhemos.
pessoas com problemas, sim, aliás, como cada um de nós, porém límpidas de carácter. cristalinas de sentimentos. que gostam de mim.
hoje, tive mais uma prova de que não sou íman de pessoas más. cada vez mais me acho sortuda com as pessoas que conheço e se cruzam no meu caminho.
hoje, precisei de levar o carro ao médico. fui com uma ponta de luz a um novo mecânico para mim. antes do mais apressei-me a dizer que estava desempregada, como quem escreve em entrelinhas. 'o carro tem que ir à inspecção, sei que precisa de lâmpadas e escovas novas, mas não sei se está apto a passar o exame'. 'não se preocupe, eu trato de tudo'.
este tudo preocupou-me. o tudo para mim podia não ser o tudo do senhor de macacão.
não é que o meu novo amigo tratou mesmo de tudo: fez o que tinha a fazer, e ainda me levou o carro à inspecção.
'tem aqui os recibos, está tudo tratado'. quanto custou a eficiência? o senhor de macacão só queria o dinheiro da inspecção.
'nem a mais, nem a menos, eu estou desempregada, o senhor não'.
admira-me cativar tanta gente com o coração no sítio. nem tudo é bom, mas também nem tudo é mau. e as surpresas são soalheiras em dias de chuva.

terça-feira, julho 15, 2014

Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço

8h. sim, oito da manhã. consulta externa no hospital de santo antónio. corredores apinhados de conversas bocejadas a café, espirros e gente feia de doença. uma sala de espera e uma secretária para todas as perguntas: onde é este serviço, e aquele, e o outro, e falta muito, e depois, as taxas moderadoras? a sala de espera torna-se, de repente, num aeroporto, uma senhora sorridente, de farda aos quadradinhos branca e vermelha, serve café, bolachas, chá, sobretudo serve consideração por todos os pacientes, uns mais graves do que outros.
na parede uma televisão fala muda para as dezenas de olhares de baixo para cima. diz que se deve lavar as mãos várias vezes ao dia. ensina como lavar. com o quê: água e sabão. em abundância.
Mas,
necessito do w.c.
sigo o conselho
como sempre, aliás
vou lavar as mãos,
aquele w.c.
dentro do hospital
com letreiros que ensinam a lavar as mãos - local de residência de bichinhos que levam a doenças -
não tinha sabão
apenas munido de um fio de água escorregava
a cada dois segundos.
crise?
de...

segunda-feira, julho 14, 2014

Não fiques triste e espera na fila

Muitas vezes olhamos as oportunidades como absolutamente únicas e irrepetivéis. Ensinaram-nos assim. Mas, como em tudo na vida, tão imprevisível que é, as oportunidades podem apenas não estar na linha cronológica certa. Talvez...talvez, hoje não seja o momento, e talvez...talvez, amanhã chegará a nossa vez para a oportunidade desejada. Nesse entretanto, vamos educando características, dando personalidade às ferramentas para a oportunidade que procuramos.
Hoje declinaram-me a oportunidade de fazer voluntariado numa associação que eu tanto ambicionava. Eu cá continuo na fila. A fazer outro voluntariado que me anima o tempo e o tempo do meu outro. Espero com paciência, a ganhar maturidade para quando chegar a minha vez na linha cronológica, estar preparada para o sim, e que o sim esteja preparado para mim.
Por isso, nada de desesperar pelas oportunidades que almejamos, a estratégia passa por persistir na fila, a engordar qualidades. Só assim cativamos o sonho.

sábado, julho 12, 2014

estórias de metro a metro - 'oh maria, estás aqui?'

De manhã o metro segue sossegado. Qualquer som desperta qualquer olhar. O som daquela manhã fez tremer as carruagens inteiras. Vai cada passageiro na sua vida - as mulheres com as carteiras ao colo como um filho; os homens com o olhar alheio em algum ponto do ar. E, nesta respiração leve de cada um, o metro pica mais uma estação, e nesse momento, ao invés de chegar um passageiro, chegou uma voz. Som feminino esbaforido e sumido. 'Oh Maria, estás aqui?'. Foi mais: 'OH MARIIIA, ESTÁS AQUI?' Penso que todos os passageiros, na sua vida, se perguntaram, se não seriam a Maria; quanto mais não seja para agradar ao empenho, à desvergonha daquela voz assumida e destemida. Ficámos sem saber se a voz era loira ou morena, ou gorda ou magra. Apenas foi validada a voz naquela viagem, sem andante. Uma coisa foi certa: em alguma carruagem naquela manhã do metro do Porto estaria uma Maria, na sua vida, com a carteira ao colo como um filho e uma voz carente no seu rasto.

sexta-feira, julho 11, 2014

Obrigada Maria

A Maria deu-me uma bofetada. Em resposta sorri e agradeci.
A Maria tem idade para ser minha mãe. Não é mãe. A vida não lhe deu essa bênção, mas deu-lhe tantos obstáculos e tantas bofetadas que aprendeu o que poucos aprendem: a ser feliz com o que tem. A dar um abraço a cada alegria que a vida não lhe tirou. Esta alegria branda pode ser uma conversa com uma amiga.
A Maria trabalhou desde que aprendeu a andar, a falar, a cheirar, a ver. A infância da Maria foi de suor e de poucas bonecas. A infância da Maria foi de ausência de pai e de chicotada quando resolvia aparecer. A infância da Maria teve amor-ríspido de mãe. Sopa quente de noite e um cobertor para todas as noites de todos os anos.
A Maria cresceu. Já mulher conheceu um homem. Foi traída pela liberdade do casamento que julgava ser, e conviveu com a maldade humana durante anos. A infância mentida foi prenúncio para uma idade adulta sem flores.
Porém,
Maria cheirava, via, andava, falava. Encontrou a felicidade no trabalho. Todas as noites fazia tomadas para acendermos as lâmpadas das nossas noites nas nossas casas. E nessa fábrica a vida embrulhou só para ela, amigas, momentos que ficam no íntimo de cada um.
Quando regressava a casa com o peso do passado nas costas, encontrava um presente envenenado – o homem que não era digno do nome marido.
Arranjou forças, coragem que só tem quem sofre. Pediu o divórcio. No meio da luta pela própria vida atacou-lhe um esgotamento que a arrastou para pilhas de medicação, para a cama, para a solidão sem tréguas.
Até que,
Alguém que reparou. Alguém soube que a sua mão levantaria o peso da alma desmaiada da Maria. E Maria deixou que o sol entrasse.
E o sol sai do corpo da Maria e o peso do mundo não chega a um grama.
A Maria podia ser escuridão, podia ser rude, podia ser amarga, involuntária.
Mas,
Apesar das rugas cravadas no rosto, escolheu ser uma centelha rara no mundo que ri e olha para o lado. A ver se há alguma vida que necessite ser levantada. Escolheu acolher a velhice da mãe sem mágoa e com amor. Escolheu ir dançar porque gosta. E, apesar de aos 55 anos ter sido dispensada pela empresa, escolheu fazer formações e procurar trabalho. A Maria escolheu levantar o próprio peso.
Obrigada Maria.