um weblog sobre literatura, viagens, momentos, poesia, sobretudo, sobre a vida. enfim, um weblog com histórias dentro.

sábado, março 02, 2013

Conversas de Tricot

o contrato Ela era enfermeira e o marido também. Aos 42 anos o marido teve um avc e entrou em coma. Os olhos dela abrem-se e a luz do dia entra toda. Pára de recortar o papel para recordar o que já lá vai para lá de 20 anos. Toda a gente me dizia, prepara o funeral. A urna estava comprada. As missas encomendadas. As lágrimas entravam em cena. Mas eu não me acreditava. Um filho de 16 anos. Eu já não tinha mãe. Tinha 40 anos. Não podia ficar sem marido. Tão nova, tão desamparada. Na flor da idade, no auge das nossas vidas. Um suspiro. Uma pausa para acertar com a tesoura. Ai que estória de amor a nossa. Conhecemo-nos no hospital. Eu tinha acabado de receber uma carta de angola do namorado a quem estava prometida. Ele acabara de acabar comigo. Por carta de angola. Do ultramar. Eram traumas, percebe? Eu triste. A minha mãe morreu de desgosto. Dois suspiros. Pausa para acertar com a tesoura no papel. O meu marido entrou ao serviço. Disse-lhe logo, não tenho tempo para brincadeiras. Ou é sério, casamento. Ou então, não, fico sozinha. Ele disse que é sério, casamento. Seis meses, casamento. Tudo seguido. Para não perder tempo. A tesoura foge. Alinha papel. Corta novamente. Ai filha, o que passei. Quatro meses em coma. Tudo a dizer-me, vai morrer. Eu enfermeira. Eu a saber. Eu religiosa. Fiz um contracto. Isto está ficar mal. Acerta papel. Acerta tesoura. Começa de novo. Com a nossa senhora. Ou morre de uma vez ou um sinal para saber se vai viver. O homem, 42 anos, enfermeiro, pai e marido. Avc. Abre um olho, caí uma lágrima. O sinal. Que mais queria eu de sinal. Nossa senhora cumpriu. Cancela urna. Médicos balançam no sinal. Lágrimas entram em cena. Desta vez emoção de alegria. Está a ficar bem este desenho recortado. Pode ficar melhor. Troca tesoura. Sai do coma. Mãe e filho saem da agonia. Nossa senhora. A fé. Os médicos confusos com a fé e a ciência. Homem, 42 anos, avc, coma. Vive. Sem fala. É o menos. Tenho marido, tenho filho. Já está, ficou bem. O papel recortado. A tesoura pequena serviu. Viajamos. O filho casou. Há netos. A vida é-me muito boa. Nossa senhora. Sequelas. O meu marido fala do túnel, de experiências de quase morte. Esteve morto. Afinal. Mas o contracto. A nossa senhora. “Nossa”.