um weblog sobre literatura, viagens, momentos, poesia, sobretudo, sobre a vida. enfim, um weblog com histórias dentro.

sexta-feira, maio 24, 2013

Fizemos o caminho até Santiago e felizmente ficámos “quilhadas”

Quando me levantei da cama só queria voltar a deitar-me. Sentia-me enjoada, doía-me a cabeça e o cheiro das meias mal lavadas provocava-me vómitos. Na casa de banho, no primeiro xixi do dia, sangrava-me um pensamento
Hoje não vou ser capaz
Do lado de lá da porta da casa de banho, a Lila vestia uma t-shirt e uns calções e apertava o dedo mindinho do pé numas sapatilhas recentes, próprias para enfrentar guerras montanhosas. Ainda sentada na sanita, a ouvir a agitação organizada da Lila, ocorria-me um verso
Ama como a estrada começa.Eu vou conseguir,
dizia eu dentro de mim. Mas o meu corpo traía-me. Na altura de puxar o autoclismo, a guerra entre corpo e mente era insuportável. Saí da casa de banho. A Lila deu-me bons dias. Disse que eu era forte e que não tinha dúvidas que iria conseguir. Enfiei a roupa. E com cada movimento fiquei mais convicta que, daí a instantes, o meu corpo diria à mente quem é que mandava. A Lila insistia que o pequeno-almoço iria reforçar o meu estado de alma. O meu estado de alma estava incrédulo. Às 7h30, uma miúda espanhola mal-humorada atirou um café com leite e torradas com compotas para a mesa. Queríamos comer antes de sair do hotel. Hotel? Eu estava no Caminho de Santiago. Eu não queria andar de carro e muito menos ficar num hotel. Comi metade. Fui sentir o hálito da manhã. Aliviei. O senhor que ia deixar-nos no albergue chegou, traído pela tatuagem da almofada na cara. Também mal-humorado. No dia anterior andámos 30 quilómetros de Tui a Redondela. Quando f-i-n-a-m-e-n-t-e chegámos, o albergue estava ‘lleno’. Cansadas, de estômago vazio, tomámos a decisão de ficar numa espécie de pousada: o senhor traído-pela-tatuagem-da-almofada-na-cara veio buscar-nos e, no dia seguinte, deixou-nos exactamente no sítio onde nos tinha encontrado. No carro, o homem-traído-pela-tatuagem-da-almofada-na-cara parecia um motor de arranque a falar: “El calor, el calor, mucho calor, 40 grados.” Eu com 40 graus de nervos e a primeira contracção de vómito. Começámos a caminhada. “Ok, eu sou capaz, eu amo como a estrada começa. Eu vou conseguir.” A Lila: “Tu és capaz, tu vais conseguir.” Eu: “Já sei! Preciso de sumo de laranja.” Já de mochila às costa a inaugurar o segundo dia de caminhada, tropeçámos no Máscara, um café com sumo de laranja natural. Melhor. Aliviei a cabeça. O estômago relaxou e eu assinalei o Caminho de Santiago com o meu vomitado. Deselegante. O meu dia só começou aí. Sentia a natureza pelo nariz. O bosque abraçava-me, quebrado pelo murmurinho de passes gigantes e barulhentos. O senhor sem nome aproximava-se de mim e da Lila, arrastando a mulher atrás que, por sua vez, tentava enganar o cansaço.
— Hola! Que tal? — (Ok, mais portuñol hoje.) — Bien! Que tal? — Bien! Tienes algo mal? — Ah, bien… o dedo mindinho [da Lila] está pisado (no meu melhor português). — Ah, portuguesas! Nós também! Já vimos desde Porriño… mas começámos em Ponte de Lima, de onde somos. — E vocês? — Nós começámos em Valença! — Estamos com a minha irmã e o meu cunhado… Vêm aí atrás… quilhados! Adeus!
Eu e a Lila rimo-nos com o corpo inteiro. Soltei uma gargalhada do fundo de mim. A partir desse momento a palavra quilhado encriptou as nossas conversas.
7.8.12 – começa a viagem dos pés até Santiago
No comboio antigo, eu e a Lila sentámo-nos na quinta fila viradas para o sentido da viagem. Apertadas com as banhas das mochilas. Falámos dos trilhos das nossas vidas. Dos poemas que almejávamos construir no futuro e o quanto precisávamos do caminho para seguirmos em frente. Do lado de lá do comboio a paisagem estava pintada com tons bucólicos e cheirava a maresia. Fazíamos a berma de Caminha, Vila Nova de Cerveira, a berma onde acaba a terra e continua o mundo no segredo do oceano. Tive fome. Saquei de uma maçã. Primeira dentada e yyeeccc… toda podre. Uma enorme risada. A viagem demorou mais de duas horas, mas passou rápido. Quando pinchei para a plataforma eram 18h20. Senti uma ou outra borboleta na barriga. Afinal, é assim que se estreia uma aventura. Começámos ali – na estação de Valença - o Caminho de Santiago com a mochila às costas. A segunda vez para as duas. A primeira vez, juntas. Atravessámos a ponte de Valença para Tui e surgiu a primeira aparição de uma paisagem bela. E o primeiro peregrino, o qual nunca soubemos o nome – no caminho conversa-se e conhecem-se as pessoas não os nomes -, mas que viríamos a tirar uma fotografia com ele e a dar um dedo de conversa. O primeiro albergue foi o de Tui. E dos poucos em que conseguimos uma cama. Dão-nos um género de forro para o colchão e para a almofada e depois o saco-cama faz o resto. Comunidade. A palavra que melhor descreve o ambiente e a vida dentro dos albergues dos peregrinos. E dos ginásios. Quando não há cama nos albergues, há colchões e duche nos ginásios. Em Pontevedra – terceiro dia de caminhada, eu e a Lila fomos encaminhadas por cinco euros para o ginásio mais próximo (um quilómetro). Lotado. O Caminho de Santiago está efectivamente internacionalizado. É bom e mau. De facto, o Caminho é de todos. Mas depois existe todo um comércio à volta que poucos sabem manter genuíno. Um dos poucos que sabe fazê-lo é o José do café em Padrón – última etapa da caminhada. Recebeu-nos de braços abertos, com um beijo na testa e uma fotografia de recordação — e tivemos de carimbar o caderno preto das suas memórias dos peregrinos. É quase como que uma caderneta com todos os cromos aventureiros que por ali passam. É um registo de gente feliz que quer viver a vida. Senti-me especial quando o José beijou-me a testa e desejou-me que os desejos da vida fossem sempre desejados, para assim serem concretizados. Esta foi a última noite antes da chegada a Santiago.
Último dia de Caminhada
Partimos ainda nem 7h30 o relógio marcava. Estávamos verdadeiramente felizes, tão felizes, que foi o único dia que choveu como que lágrimas da nossa felicidade, bênção da nossa peregrinação interior. Não sei se foi da neblina, do cansaço ou do facto de ter deixado de haver setas amarelas. Perdemo-nos. E aí percebemos que o nosso sentido de orientação é nulo. Subimos a montanha. Subimos. Subimos. Subimos. Para depois descermos. Descermos. Descermos. Graças a uma senhora muito engraçada que tinha dois cãezinhos como companhia, conseguimos retomar o caminho. Disse-nos que não estávamos no Caminho de Santiago. E levou-nos com uma bengala na mão até ao local onde tomámos a decisão errada ao virar à direita e não à esquerda.
Finally Santiago!
Chegar. Foi quase como virmo-nos. Ter um orgasmo. Depois de suar, rir, chorar e trespassar todas as etapas do Caminho, alcançar Santiago, foi uma verdadeira ejaculação. Primeiro, andámos aos solavancos, ombros contra ombros. Rodeadas por demasiados turistas. Apertos. À medida que caminhava sentia-me num palco. Agarrei a Lila pela mão e fiz como se estivéssemos a dançar. Porque estávamos em festa. E quando se está feliz e em festa, dança-se. Os nossos corpos rebolaram dançantes até ficarem caídos diante da catedral de Santiago. Silêncio. Cá dentro. O sabor da vitória levantava pó dentro de mim. Eu e a Lila enfiámo-nos, cada uma, no seu caderno. A sós com os nossos segredos. Santiago é assim: um segredo a céu aberto.

quinta-feira, maio 23, 2013

do medo

às vezes alguém acorda de manhã e não tem nada na cabeça. é um vazio. acontece muito por esta altura em que todas as cabeças estão ocupadas com muita coisa que nada tem a ver com aquela cabeça vazia. então os bons-dias são rápidos, fugazes, muitas vezes fugidios.
deixa ver se ela não me vê para não perder tempo com cumprimentos
é verdade o tempo corre, e cansamo-nos tanto a correr também atrás dele. também acontece acordarmos de manhã e termos a cabeça cheia. cheia de merda. títulos gordos dos jornais. insónias que nos lembram que o copo está, ao mesmo tempo, meio cheio e meio vazio. eu tenho a cabeça como o copo, ora cheia, ora vazia. e entre uma coisa e outra um medo. um pequeno medo em ponto cruz com a pequena dor.
aquela da canção
medo de amanhã não poder fazer o que gosto. o que faz acordar todos os dias. não ser como aquelas meninas bem vestidas das capas das revistas que são privilegiadas porque a flecha do cupido lhes acertou. oiço tantas estórias. acredito em algumas linhas. não quero ser capa de revista, e quero vestidos à minha medida e ao meu gosto. sobretudo, quero acordar de manhã e ter a certeza que vou continuar a fazer o que gosto. mas há sempre 'ses'. e há um se que me distrai. um será que me desorienta. e as mãos levantam-se vazias. a tentar agarrar o futuro. que anda por ai algures. não sei se me a fintar. um medo que nao me larga.
quem tem cu tem medo
tenho vida à minha frente. o medo de não ser a pegar nas rédas do cavalo para ir de cabelos longos à solta, a fazer o que quero. alguém disse
o cavalo passa desmontado uma vez por nós, se passar a segunda já vai montado
a luta. de todos os dias. de acordar e levantar. a luta da coragem. a luta com o divino. a luta do medo.

quarta-feira, maio 22, 2013

da vida

quatro beijos. dois nele. dois nela. e depois tudo o que quisesse era meu. a casa, as favas, as batatas, o presunto, o sumo, e até um quarto.
a menina vem para cá e eu trato-lhe de tudo
um mimo. aos 81 anos alguém dizer-me que me tratava de tudo [quando era agora a vez de alguém lhe tratar de tudo]. porque nunca pode tratar de ninguém. convidava-me assim a ser a filha que nunca teve. aquilo que nunca tratou. o desgosto que a vida lhe deu. viu-me pela primeira vez. não me conheceu defeitos nem qualidades. mas queria tratar de mim. e no fundo, por vezes, bem precisamos de um colo inesperado para desabafar sem falar, olhar sem dizer, contar sem falar. eu bem quis deitar-me naqueles 81 anos, ser tratada sem perguntas, esquecer-me das pessoas más, e agarrar-me aquele sorriso que me diz que há pessoas boas.

quarta-feira, maio 15, 2013

de manhã há um nevoeiro que persiste. e impede-me de visualizar os quilómetros que os meus pés já percorreram. trilhos sinuosos, altos e baixos, com sol intenso e chuva dura. e eu continuei a caminhar. a favor do vento. contra o vento. mas ...nunca parei. nem mesmo quando salpicos de sangue rompiam a roupa. mas, por vezes, há um nevoeiro que se acomoda e não me deixa ver tudo o que sou. mas sei, do fundo de mim, tudo o que preciso fazer é inspirar e expirar. porque quando o ar sair, sacode a bruma do nevoeiro. e nesse momento, entre um sopro e outro, eu vou ver, quem sou. o meu passado, presente e futuro. o que quero e o que não quero. as minhas cores, formas, o meu chão e o meu céu.

terça-feira, maio 07, 2013

falta um dente no sorriso do pastor. estende a mão num cumprimento alegre e apertado como a simpatia. "a menina...menina, porque para mim, todas as mulheres são meninas desde o dia em que nascem até ao dia em que morrem...a menina tem antepassados judaicos. tem olhos claros". atrás de agostinho monteiro, cabras e ovelhas, centenas, saltam agitadas de um lado para o outro na lama de palha. no meio da exploração há uma banheira cheia de água da chuva, onde o porto bebe com a língua de fora - como os cães saciam a sede. "dou nome de cidades aos cães, porque fui emigrante". coça a testa, recua no passado e continua: "andei pela frança com passaporte de coelho. sabe o que é um passaporte de coelho? antes do 25 de abril íamos pela noite para fora do país, trabalhei lá na citroen. regressei, felizmente, e para me lembrar do nosso portugal pus nomes do nosso porto, da nossa lisboa, do nosso mondego aos cães" - guardadores do rebanho. bem, senhor agostinho, agora os pastores são obrigados a cumprir obrigações fiscais. o que pensa sobre isto? tem rendimentos que justifiquem esta nova medida? "tenho 80 anos, uma reforma de 250 euros, centenas de cabras que vão parir no monte, eu tragos as crias às costas, fodo as costas. só se lembram dos pastores com o cabrito na mesa. quando os pastores deixarem de existir, deixa de haver comer na mesa. e depois perguntam: onde há pastores? há muitos a desistir disto por causa deste país pobre e porco, que trata com miséria quem lhe dá tudo". os olhos do pastor agostinho são claros o que me leva a pensar que também ele tem origem judaica. "jesus foi o primeiro comunista na terra. queria plantar o bem. dar educação e saúde a todos". por momentos penso que eu e aquele pastor partilhamos a mesma árvore genealógica.