um weblog sobre literatura, viagens, momentos, poesia, sobretudo, sobre a vida. enfim, um weblog com histórias dentro.
terça-feira, outubro 29, 2013
estórias de metro a metro - dos gestos mal-criados.
os dois garotos despem-se até à última brecha da porta do metro. a porta fecha-se. ela sai de cena, ele fica.
ele fica e fica também a última imagem que a miúda deixou para ele e para todos os passageiros que estivessem a apreciar o momento. a miúda despede-se com o dedo médio da mão no ar. encolheu os restantes dedos e exibiu o dedo proibido. fez-me lembrar o mister bin. a cena era a mesma. o mesmo dedo. utilizado numa despedida e à descarada. só que.
só que estava a senhora de nariz altivo, roupa altamente engomada, sapatos e carteira exemplarmente brilhantes, e a postura rigorosamente alinhada com o varão do metro.
- o menino não tem vergonha?
o menino teve uma vergonha do tamanho de duas grandes maças vermelhas a crescer-lhe nas bochechas.
tanta vergonha que até me fez crer que mal o metro despachou passageiros na estação seguinte, o menino despachou-se a ele mesmo a fugir das próprias bochechas.
quinta-feira, outubro 24, 2013
estórias de metro a metro - dos tacões
ela entrou no metro aos tropeções.
primeiro tropeçou num tacão. depois o outro falhou. mesmo à entrada do metro. mesmo à mercê da gargalhada alheia.
a miúda com cara pintada de mulher devia ter uns 17 anos. de livros na mão e castigada pela chuva, entrou no metro já corada pelo sucedido - como se ainda estivesse a ensair a personagem para as amigas na escola.
tentava trejeitos de mulher, mas quando levava as unhas à boca denunciava a miudeza dos anos.
começou a baloiçar os longos cabelos, e os outros passageiros trociam a cara pelo vento e pingos de chuva que saiam da cabeça da miúda-que-tentava-ser-mulher.
a vida é muito perspicaz: faz-nos quer ser grandes, quando pequenos, para aguentarmos todas as vezes que os tacões falham, e faz-nos ficar mais meninos, quando velhinhos, para irmos desta, com a sensação de não estarmos cansados por termos levantado tantos tacões.
segunda-feira, outubro 21, 2013
do pão com panado
A senhora rastejava os olhos pelo balcão. Tinha lápis preto nos olhos, parecia já de uma semana. Falava para o marido que estava escondido atrás do balcão, entre pedidos de clientes, com trajes vagabundos cosidos pela própria vida.
Tem algo rápido para comer?
Sim, menina, responde, olhando-me com os olhos borratados de negro a condizer com o casaco que vestia. Apontou para tudo quanto passou pelas mãos do marido que nunca conheci, pois estava para lá das paredes gastas pelo tempo.
‘Rissóis, pão com panado e omelete’, conta pelos dedos das mãos. Um sorriso brilhava no meio de tanto negro.
Pode ser um pão com panado, escolho.
A mulher arrasta-se até à mesa. Com o peso do casaco, com o peso do lápis preto nos olhos, com o peso do pão com o panado, com o peso da vida.
O dia está correr bem?
‘Nem o dia, nem a vida. A minha filha está desempregada, ganha 500 euros numa loja, e na área dela, em psicologia, arranja trabalho se for voluntário. Um filme’.
‘Um’, não, O filme desta sociedade.
Querem mãos, pernas, braços, cabeça, tronco, mais o suor, mais as horas além do dia, o sol e a noite, até a nossa alma. Para quê? Para no fim nem um pão com panado oferecerem em modo de gratidão.
quarta-feira, outubro 09, 2013
estórias de metro a metro - os picas
as mulheres roliças empurraram-se para dentro do metro. traziam sacos, carteiras, mochilas com rodinhas, e sobretudo traziam o próprio peso. suor de um dia inteiro, tatuagens gastas pelo tempo a contar estórias de homens apaixonados de espingarda na mão. falavam como num auditório, muito alto. sobre 'a morcona da mulher do tone que nem um filho da puta de um peixe sabe fritar'. tinham o cabelo manchado de cores. o entusiasmo das duas foi interrompido pela presença dos 'picas'.
tantos sacos, carteiras, mochilas com rodinhas e nada de andante. o 'pica' não pôde picar e por isso multou.
'oh foda-se, oh pica, deixe passar esta, é só uma paragem'. 'oh caralho, onde é que você 'tava que num o 'bi'...olhe, se sabia, ia noutro'.
o 'pica', um senhor bastante simpático para a linguagem que lhe era dirigida, explicou minuciosamente à mulher roliça mais descontrolada que eram 'as regras'. mas a mulher podia até saber fritar melhor peixe do que a mulher do tone, mas regras não era a sua praia. dizia ela que mal abandonasse o metro ia rasgar o papel da multa e esquecê-la. o senhor 'pica' pediu-lhe 'respeito'. será que é respeito no pagamento das facturas que o país nos anda a pedir há muito tempo? mas será que foi esse o metro que apanhámos sem pagar bilhete?
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