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sexta-feira, outubro 24, 2008

Português aprende português [em Londres]


[José Carlos Farinha, Maio de 2008]

A manhã está como a maioria das manhãs em Londres – de nevoeiro – mas António brilha e sorri no meio da bruma e da multidão, que num sábado assola o British Museum, na tentativa de resgatar para o presente os antepassados históricos do mundo. No pátio do museu, António, que conta este ano 30 anos, perde-se entre as gigantescas colunas, a imitar a Grécia Antiga, e deixa-se confundir nas camisas brancas de homem. É um rapaz pequeno, magro, de sorriso largo e um brilho que parece afectar a habitual neblina londrina. Realça-se. Ana, de 26 anos, não o larga de vista e acompanha-o no seu passo pesado e martelado. Ambos riem muito. Dirigem-se para a London Review Bookshop, umas das muitas livrarias da Grande Londres, e lá dentro perdem-se nos títulos. Ana conhece a dança das letras na capa de cada publicação. Já António esforça-se por contabilizar o abecedário, somar as letras para perceber essa dança.
Ana e António contam 17 lições de português e a desenvoltura do aluno para a gramática de Camões está de vento em poupa. Ana, a professora, e António o aluno.

Retrato de uma luta
António nasceu e cresceu na Madeira até aos 17 anos, depois “abalou para o Seixal”, na região de Lisboa, onde viveu até o ano passado, altura em que decidiu arriscar a vida em terras de sua majestade. Corajoso, rumou até Londres, mas primeiro “trabalhou, trabalhou, trabalhou”. Na cidade que nunca dorme arranjou trabalho numa empresa de limpeza, e através desta, foi trabalhar no consulado português. Foi aqui onde conheceu Ana – quem lhe viria a ensinar como se escreve a língua dos poetas portugueses, o idioma que nasceu e cresceu com ele, mas que a sua aprendizagem “é pouco valorizada na ilha” – como conta António. Cresceu sem ler ou escrever. As palavras saíam da boca como crónicas de som.
Ana ensina o abecedário a António, e a contrapartida é a evolução que o aluno português de português apresenta.
Duas horas por semana é o suficiente para António ser hoje capaz de enviar uma simples sms. Uma batalha. Uma batalha que Ana combate todos os dias. “Não são apenas as duas horas de aulas. Envio-lhe sms’s para avaliar a capacidade de resposta, para o fazer ler e ter empenho a escrever”, conta. Aliás, como as novas tecnologias são a sombra de cada dia, ensinar português traduziu-se por também adestrar os programas de comunicação virtual: o skype, o MSN, e claro, endereço de e-mail.
A última novidade na casa de António é um computador portátil: “Estou aprender a manejar o bicho” [risos].
Ao aprender português, António não só contraria o que diz ser constante na Madeira – o analfabetismo - como também conquistou a sua privacidade. Na adolescência, confessa, era a irmã quem lhe valia para escrever cartas de amor. “Uma vergonha”, recorda António, ao mesmo tempo que tapa os olhos com as mãos. As raparigas por quem se apaixonava recebiam cartas que teriam já sido lidas, numa espécie de lápis azul, no entanto com um objectivo adjuvante. “Toda a minha correspondência era recebida pela minha irmã”, diz.
Numa família de sete filhos, António é dos mais novos, e como tal “já não era necessário aprender a ler e a escrever”. As actividades piscatórias que orientam o sustento da sua família necessitavam do trabalho de António, e como destaca, “basta um ou outro elemento de cada família na ilha ler e escrever, o resto tem de ajudar nas tarefas de trabalho”.

Objectivo: até ser capaz “de ler sozinho”
É no consulado português que Ana vasculha todo o tipo de recurso para ajudar nas aulas de português do seu aluno: todas as publicações do ensino básico são material premente. Conheceu-o nos corredores do consulado. “Vi um rapaz tímido a tocar-me o braço e perguntou se era professora, se estaria disponível para lhe ensinar português”, lembra.
Ana estudou História nos auditórios de Coimbra entre 2001 e 2006. O ano passado rumou até à Grande Londres, onde dá aulas privadas de português, e onde conquistou o documento britânico que lhe permite ensinar no Reino Unido. Com 26 anos, e apenas há um ano em Londres, Ana pode leccionar no ensino público inglês e está inteiramente activa dentro da comunidade portuguesa, participando em projectos que visam a total integração de portugueses dentro das fronteiras britânicas. Para já, o grande desafio é insistir no A B C do António até que “seja capaz de ler sozinho”.

2 comentários:

Anónimo disse...

Eis exemplos que se devem promover e seguir, que nos mostram o possivel sem ignorar o esforço para o alcançar, deixando no fim o sabor refinado de uma etapa percorrida e impulsionada pelo humilde desejo de ser "pessoa"!

Anónimo disse...

Acho que ninguem tem de ter vergonha por uma coisa que nao sabe e que e uma coisa normal.
O que a Ana esta a fazer e um acto simpatico, amigavel e amigo.