Quando me levantei da cama só queria voltar a deitar-me. Sentia-me enjoada, doía-me a cabeça e o cheiro das meias mal lavadas provocava-me vómitos. Na casa de banho, no primeiro xixi do dia, sangrava-me um pensamento
Hoje não vou ser capaz
Do lado de lá da porta da casa de banho, a Lila vestia uma t-shirt e uns calções e apertava o dedo mindinho do pé numas sapatilhas recentes, próprias para enfrentar guerras montanhosas. Ainda sentada na sanita, a ouvir a agitação organizada da Lila, ocorria-me um verso
Ama como a estrada começa.Eu vou conseguir,
dizia eu dentro de mim. Mas o meu corpo traía-me. Na altura de puxar o autoclismo, a guerra entre corpo e mente era insuportável. Saí da casa de banho. A Lila deu-me bons dias. Disse que eu era forte e que não tinha dúvidas que iria conseguir. Enfiei a roupa. E com cada movimento fiquei mais convicta que, daí a instantes, o meu corpo diria à mente quem é que mandava.
A Lila insistia que o pequeno-almoço iria reforçar o meu estado de alma. O meu estado de alma estava incrédulo. Às 7h30, uma miúda espanhola mal-humorada atirou um café com leite e torradas com compotas para a mesa. Queríamos comer antes de sair do hotel. Hotel? Eu estava no Caminho de Santiago. Eu não queria andar de carro e muito menos ficar num hotel. Comi metade. Fui sentir o hálito da manhã. Aliviei. O senhor que ia deixar-nos no albergue chegou, traído pela tatuagem da almofada na cara. Também mal-humorado. No dia anterior andámos 30 quilómetros de Tui a Redondela. Quando f-i-n-a-m-e-n-t-e chegámos, o albergue estava ‘lleno’. Cansadas, de estômago vazio, tomámos a decisão de ficar numa espécie de pousada: o senhor traído-pela-tatuagem-da-almofada-na-cara veio buscar-nos e, no dia seguinte, deixou-nos exactamente no sítio onde nos tinha encontrado.
No carro, o homem-traído-pela-tatuagem-da-almofada-na-cara parecia um motor de arranque a falar: “El calor, el calor, mucho calor, 40 grados.” Eu com 40 graus de nervos e a primeira contracção de vómito. Começámos a caminhada. “Ok, eu sou capaz, eu amo como a estrada começa. Eu vou conseguir.” A Lila: “Tu és capaz, tu vais conseguir.” Eu: “Já sei! Preciso de sumo de laranja.” Já de mochila às costa a inaugurar o segundo dia de caminhada, tropeçámos no Máscara, um café com sumo de laranja natural. Melhor. Aliviei a cabeça. O estômago relaxou e eu assinalei o Caminho de Santiago com o meu vomitado. Deselegante.
O meu dia só começou aí. Sentia a natureza pelo nariz. O bosque abraçava-me, quebrado pelo murmurinho de passes gigantes e barulhentos. O senhor sem nome aproximava-se de mim e da Lila, arrastando a mulher atrás que, por sua vez, tentava enganar o cansaço.
— Hola! Que tal?
— (Ok, mais portuñol hoje.)
— Bien! Que tal?
— Bien! Tienes algo mal?
— Ah, bien… o dedo mindinho [da Lila] está pisado (no meu melhor português).
— Ah, portuguesas! Nós também! Já vimos desde Porriño… mas começámos em Ponte de Lima, de onde somos.
— E vocês?
— Nós começámos em Valença!
— Estamos com a minha irmã e o meu cunhado… Vêm aí atrás… quilhados! Adeus!
Eu e a Lila rimo-nos com o corpo inteiro. Soltei uma gargalhada do fundo de mim. A partir desse momento a palavra quilhado encriptou as nossas conversas.
7.8.12 – começa a viagem dos pés até Santiago
No comboio antigo, eu e a Lila sentámo-nos na quinta fila viradas para o sentido da viagem. Apertadas com as banhas das mochilas. Falámos dos trilhos das nossas vidas. Dos poemas que almejávamos construir no futuro e o quanto precisávamos do caminho para seguirmos em frente. Do lado de lá do comboio a paisagem estava pintada com tons bucólicos e cheirava a maresia.
Fazíamos a berma de Caminha, Vila Nova de Cerveira, a berma onde acaba a terra e continua o mundo no segredo do oceano.
Tive fome. Saquei de uma maçã. Primeira dentada e yyeeccc… toda podre. Uma enorme risada. A viagem demorou mais de duas horas, mas passou rápido. Quando pinchei para a plataforma eram 18h20. Senti uma ou outra borboleta na barriga. Afinal, é assim que se estreia uma aventura.
Começámos ali – na estação de Valença - o Caminho de Santiago com a mochila às costas. A segunda vez para as duas. A primeira vez, juntas. Atravessámos a ponte de Valença para Tui e surgiu a primeira aparição de uma paisagem bela. E o primeiro peregrino, o qual nunca soubemos o nome – no caminho conversa-se e conhecem-se as pessoas não os nomes -, mas que viríamos a tirar uma fotografia com ele e a dar um dedo de conversa. O primeiro albergue foi o de Tui. E dos poucos em que conseguimos uma cama. Dão-nos um género de forro para o colchão e para a almofada e depois o saco-cama faz o resto. Comunidade. A palavra que melhor descreve o ambiente e a vida dentro dos albergues dos peregrinos. E dos ginásios. Quando não há cama nos albergues, há colchões e duche nos ginásios. Em Pontevedra – terceiro dia de caminhada, eu e a Lila fomos encaminhadas por cinco euros para o ginásio mais próximo (um quilómetro). Lotado.
O Caminho de Santiago está efectivamente internacionalizado. É bom e mau. De facto, o Caminho é de todos. Mas depois existe todo um comércio à volta que poucos sabem manter genuíno. Um dos poucos que sabe fazê-lo é o José do café em Padrón – última etapa da caminhada. Recebeu-nos de braços abertos, com um beijo na testa e uma fotografia de recordação — e tivemos de carimbar o caderno preto das suas memórias dos peregrinos. É quase como que uma caderneta com todos os cromos aventureiros que por ali passam. É um registo de gente feliz que quer viver a vida. Senti-me especial quando o José beijou-me a testa e desejou-me que os desejos da vida fossem sempre desejados, para assim serem concretizados. Esta foi a última noite antes da chegada a Santiago.
Último dia de Caminhada
Partimos ainda nem 7h30 o relógio marcava. Estávamos verdadeiramente felizes, tão felizes, que foi o único dia que choveu como que lágrimas da nossa felicidade, bênção da nossa peregrinação interior. Não sei se foi da neblina, do cansaço ou do facto de ter deixado de haver setas amarelas. Perdemo-nos. E aí percebemos que o nosso sentido de orientação é nulo. Subimos a montanha. Subimos. Subimos. Subimos. Para depois descermos. Descermos. Descermos. Graças a uma senhora muito engraçada que tinha dois cãezinhos como companhia, conseguimos retomar o caminho. Disse-nos que não estávamos no Caminho de Santiago. E levou-nos com uma bengala na mão até ao local onde tomámos a decisão errada ao virar à direita e não à esquerda.
Finally Santiago!
Chegar. Foi quase como virmo-nos. Ter um orgasmo. Depois de suar, rir, chorar e trespassar todas as etapas do Caminho, alcançar Santiago, foi uma verdadeira ejaculação. Primeiro, andámos aos solavancos, ombros contra ombros. Rodeadas por demasiados turistas. Apertos. À medida que caminhava sentia-me num palco. Agarrei a Lila pela mão e fiz como se estivéssemos a dançar. Porque estávamos em festa. E quando se está feliz e em festa, dança-se. Os nossos corpos rebolaram dançantes até ficarem caídos diante da catedral de Santiago. Silêncio. Cá dentro. O sabor da vitória levantava pó dentro de mim. Eu e a Lila enfiámo-nos, cada uma, no seu caderno. A sós com os nossos segredos. Santiago é assim: um segredo a céu aberto.